Confira o primeiro texto da série “Juventude que foge de casa”, produzido pelos jovens da Agência Jovens Comunicadores publicado no site da BemTv.
Vitória completaria 25 anos no dia 13 de julho. Nós éramos amigas de infância até o dia que recebi uma ligação. Bastou um telefonema para eu dar início à minha vida adulta: Vitória tinha cometido suicídio.
A vida dela nunca foi fácil. Uma adolescente se descobrindo mulher trans, negra, bissexual e periférica? Nunca é fácil. Ela sofreu com a depressão e infelizmente foi vencida. Sem um amparo psicológico e nem apoio da família.
O silêncio depois de desligar aquela chamada foi um corte na alma. Eu já não era mais a mesma: respiração pesada e mente inquieta. Logo pensei: onde eu estava? Sofri o luto, mas hoje entendo melhor minha amiga e os nossos limites. Ela participou do meu crescimento de um jeito que eu não previ.
Após alguns anos de muita dor e reflexão, resolvi transformar tudo isso em luta. Publiquei uma trend no twitter. Lá muitos me escrevem e passo a conhecer histórias que estão aí invisíveis. São crianças e adolescentes, se descobrindo ou não, pensando em fugir de casa ou que já fugiram. Se você precisar abandonar tudo, por favor, antes me escreve.
Eu me chamo Nicole Beatriz, mas preciso dizer: sou uma representante imaginária. Sim, sou uma personagem criada pelos Jovens Comunicadores. Temos medo de perder nossas Vitórias e sofrer o luto das Nicoles. Por isso, nossas personagens fictícias, Nicole e Vitória, apresentam histórias reais organizadas por nós nesta série de três textos. Ao todo, foram apurados oito casos de Niterói e São Gonçalo. Dizemos que os casos relatados são de seguidores do Twitter da Nicole, sem expor, assim, nem os nomes das vítimas e nem o das fontes.
O que motivou a Nicole a contar essas histórias foi a perda da amiga. Ela considerava a Vitória como uma irmã, foi um momento difícil. Nicole decidiu dar voz a pessoas que passaram por diversas situações e ajudar as vítimas.
De acordo com a Vara da Infância e Juventude de Niterói, em maio, estavam acolhidas 44 crianças e adolescentes na cidade. Em São Gonçalo o número é parecido, 48. Essa é uma população dinâmica, alguns são adotados, outros não. São vítimas de maus tratos, abandono, abusos e uma série de violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Vitória talvez estivesse viva se acolhida numa dessas casas ou se alguém da escola, da igreja, do posto de saúde tivesse denunciado, inclusive sua amiga.
O Disque 100 é o canal nacional para se fazer denúncias anônimas de abusos. Fazer isso é um dever da população. Os dados do Disque 100 mostram melhor a situação desse grupo de pessoas vulneráveis. Até maio de 2021 foram feitas 5.263 denúncias sobre 21.847 violações no estado do Rio de Janeiro. São Gonçalo aparece em 4° lugar com 256 denúncias e 1.121 violações, já a cidade de Niterói aparece em 5°lugar com 198 denúncias e 759 violações. Mas qual é a cara dessa violência e o que podemos fazer? Devolvemos Nicole à narração do texto.
Eu reassumo para falar do encontro cruel da religião com o nosso despreparo em falar da sexualidade e de prevenir o abuso sexual. Foco em duas histórias de jovens que me escreveram sobre como a orientação sexual ou o abuso foram motivos para culpabilizar a vítima, num tribunal da igreja penalizando a diversidade da vida.
Dentro da sua própria casa e por uma pessoa da família, um menino foi abusado por 5 anos. O sonho de se casar virgem virou um pesadelo que começou aos dez anos de idade, um crime de estupro. Isso não é e nunca vai ser uma manifestação sexual. O garoto ouviu frases do tipo “Deve ter gostado e por isso virou homossexual”. Não é uma conexão de ideias racional, “mas é como entendem”, acredita o jovem falando dos pais e da comunidade religiosa.
É uma versão parecida do “bicha”, que ouvia em tom de preconceito do abusador durante o dia, antecedendo a violência física, sexual e psicológica. A mistura de medo e angústia se devia inclusive pela vida do abusador caso o fato viesse a público, do que poderia acontecer. Sim, por afeto e empatia com o abusador que também é seu familiar.
Não era para ser um lar? Nesses casos, a quem pedir ajuda e como ajudar?
Um dia ele questiona o porquê do abuso e a resposta não deixa dúvida da relação de uso. “Faço isso com você por falta de opção de outros homens”, como que falando a um objeto.
Pra fugir dessa situação, juntou 800 reais das mesadas que recebia. O plano era ir para o interior de São Paulo, mas com 15 ou 16 anos a situação de abuso foi interrompida e se tornou pública. Não sei se o meu seguidor no twitter sabe de todos os detalhes da descoberta, o que contaram para ele foi que o espírito santo revelou na igreja a situação. A mãe ouviu de uma “irmã” e depois veio saber com ele, o pai soube logo depois. O medo de violência se materializou de outra forma: em indiferença e desconfiança. “Meu pai não deu a mínima”. E isso só desvalida o sofrimento, torna o sentimento de solidão e abandono mais vivo.
O que me chamou a atenção, como amiga da Vitória, foi o fato dele ter conseguido juntar 800 reais, “escondido” dos pais, para sair do Rio e ir para o interior de São Paulo. Ele queria ficar o mais longe possível do abusador e acabar com aquele sofrimento diário e que perdurou por anos, porém, o que mais me choca é saber que a insegurança, o medo, o desdém e a falta de acolhimento, é muito mais presente nos lares do que podemos imaginar. Por mais que você esteja ferido, você não é ajudado e muito menos acolhido. Afinal, que lares são esses? Quem tem o direito à segurança e à proteção dentro de casa?
Culpar a vítima é negar o seu sofrimento. Dizer que ela gostou e que foi consensual é algo estrutural na nossa sociedade, que vem de um passado escravocrata e racista. O Brasil miscigenado não é algo bonito, é motivo de dor e sofrimento para pessoas, sobretudo indígenas e negras, que foram violentadas e desumanizadas durante todo o período colonial e imperial. Precisamos desconstruir urgentemente esse pensamento de dúvida e validez, o ato da violência sexual é asqueroso e repugnante, e jamais deve ser considerado como qualquer outra coisa, além de violência e crime.
A segunda história é um grito de socorro silenciado. “Estou sempre atuando”, vivendo duas vidas dentro de uma só. Quando você é LGBTQIA+ e vive o contexto cristão e conservador, esta realidade é mais normal do que imaginamos.
O papel do “filho perfeito” diante de sua família, por suprir as expectativas que criaram sobre ele, ficou no passado. Bastou uma descoberta: a foto dele em um grupo no facebook, criado para conhecer pessoas, onde ele participava. E, então, começaram as especulações aos seus 16 anos. A reação da mãe foi questionar se ele já havia sido abusado quando menor. “Não”, responde. “Então você não tem motivos para ser doente, ter esse desvio.” Ele é um homem cisgênero e bissexual e se sente “almaldiçoado” por não ser hétero. Não por Deus, pois tem fé. Mas pelos caminhos onde a natureza se mistura com a sociedade e define quem será discriminado e quem será privilegiado.
Em mais um domingo, quando ele estava chegando na igreja com a mãe, a pastora chamou os dois, foram para trás da igreja, na casa dela. “Chegaram dois casais de obreiros, me acusaram [de ser gay]”, julgaram sua foto de perfil, a foto foi mostrada para sua mãe e ela chorou. “Eu nunca tinha visto uma situação dessa, parecia um tribunal”, concluiu o jovem.
Essa história me fez lembrar de outra mãe chorando o filho crucificado pela religião. Mãe e filho expostos praticamente sem nenhum advogado de defesa. Qual tribunal seria esse? Mais um tribunal cristão?
Essas histórias foram relatadas para mim justo no mês de junho, quando o mundo celebra o mês do orgulho gay. Desde 1969, a comunidade passou a lutar ativamente em prol de direitos e igualdade civil, em oposição à polícia estadunidense que prendia homossexuais apenas por existirem. Assim surgiu a Rebelião de Stonewall Inn. A partir deste momento surgem as paradas do orgulho LGBTQIA+ com o intuito de reafirmar suas existências e combater o preconceito que cerca toda uma sociedade cishéteropatriarcal.
Apesar dessa luta oficializada acontecer há décadas, muitas pessoas, inclusive jovens, ainda são expostos à opressão da cisgeneridade e da heteronormatividade compulsória. No Brasil, é considerado crime qualquer tipo de discriminação a pessoa ou a comunidade LGBTQIA+, sendo equiparado ao crime de racismo. No entanto, se faz muito necessário a denúncia da violência física, moral ou psicológica. É o início de uma apuração. Pode ser feita em qualquer delegacia ou de forma virtual, no disque 100 e caso a pessoa seja menor de 16 anos, pode buscar também o Conselho Tutelar da cidade.
Após este tribunal religioso, vamos ver como funciona o cárcere ou a vigilância sufocante para a saúde mental de crianças e adolescentes. Algumas fugiram. Outras ainda vivem a prisão na própria casa. Este é o tema do próximo texto da série.