Amor não faz o cárcere

Hoje, Nicole Beatriz e Vitória, as personagens criadas pelos Jovens Comunicadores estão de volta para falar mais dos nossos medos. Continuamos a contar a história anterior, do tribunal religioso para a sexualidade de um adolescente. E trazemos uma história de amor que na verdade é abuso e cárcere. Nicole usa a sua voz de comunicadora para ajudar crianças e adolescentes que precisam fugir de casa, do abuso, das violências. A sua amiga, Vitória, talvez ainda estivesse viva se tivesse pedido ajuda e acolhimento. Assim celebramos a memória de todos os meninos e meninas que não tiveram a oportunidade de celebrar mais um ano do Estatuto da Criança e Adolescente, no próximo dia 13 de julho.

Lugar de paz e descanso é a nossa casa, mas às vezes não é bem assim que a banda toca.

Eu já falei um pouco do primeiro jovem, mas acho importante abordar agora o peso da vigilância que ele sofre em casa desde o “tribunal” da religião sobre a sua sexualidade. Já é adulto, vive na casa da mãe. “Parece que eu estou sempre atuando”, me escreveu, dizendo também que a sensação é de estar sempre traindo. Só não sabe dizer a quem: “eles [os pais] ou a mim?” Para se prevenir de uma “maldição”, que ele teme de verdade por conta da discriminação presente em sua religião, ele toma remédio escondido: PrEP HIV, um método de prevenção à infecção que é distribuído em postinho de saúde. Ele esconde o remédio entre as roupas dentro do armário, o efeito só existe se tomar diariamente, e assim, ele faz. Imagina o trabalho dia após dia de camuflar as pílulas. 

Depois de mais uma discussão com a mãe, ele decidiu sair de casa. “Que mãe chama um filho de doente?”, disse o adolescente. A mãe o puxou pelos cabelos e não parava de bater nele, ele saiu como estava, sem camisa e descabelado. Subiu em um morro de Niterói para se abrigar na casa de um parente, mas descobriu que não tinha abrigo, entre os mais próximos, só a irmã mais nova dentro de casa. 

Mães são as principais denunciadas por violações aos direitos das crianças quando o assunto é negligência. O relatório de 2019 do Disque 100, canal nacional de denúncia dos direitos humanos, mostrou que 56% dos suspeitos por negligências eram as mães das próprias crianças e adolescentes. Isso reflete também a realidade de abandono por parte dos homens, que deixam famílias sem a presença paterna diária. E no caso de abuso sexual, eles estão na frente da estatística. 

O pai deste meu amigo e seguidor o considera um “oportunista, interesseiro”, e eles não se falam há mais de um ano. A mãe é dona de casa.  E não estudou muito, foi até a sexta série. O jovem, entende que deve proteger os pais, mas “protegendo eles de mim, disfarçando minha vida” com se fosse ele o problema.

Ainda que tenha sido na igreja que a sua sexualidade se revelou de forma tão sofrida, ele acredita que é graças a ela que ainda está vivo. “Só não me matei ainda porque pela igreja, eu vou para o inferno”. Frequentemente a mãe lhe tira o celular, ele não tem o direito de ter redes sociais e nem o poder de andar sem vigias autorizados. No ano passado, foi obrigado a cancelar sua conta do instagram por “parecer gay demais”, mas relembrando que ele é bissexual. São muitas questões para lidar. Vive “fora dos padrões sociais” que separa classes de privilegiados e discriminados. “Sou também negro e gordo”. 

Fugir de casa foi só um impulso de um dia. Imagino que a mãe é a única que lhe dá alguma certeza de ter onde ficar apesar de toda vigilância, humilhações e violências. Mas o plano de sair dessa prisão psicológica ocorre lentamente, passa pela universidade, para assim ter a sua renda e lugar seguro, liberdade e direitos resguardados para além do papel.

Este relato me rasgou o coração. Infelizmente, realidades semelhantes a esta são completamente comuns, ainda mais com o avanço do ambiente cristão conservador. Nunca passei por um tribunal social, por toda esta vigilância, menos ainda em casa. Vivo os privilégios do  padrão social aceito, sou uma mulher branca, cisgênero e heterossexual. Porém, a Vitória não, era uma dessas pessoas que precisam da nossa atenção e não julgamento. Não sei dizer ao certo, mas pressões sociais como estas, vividas em casa, contribuíram para torná-la mais uma estatística vítima dessa conjuntura de intolerância da diversidade sexual, especialmente dos jovens.

O rapaz passou a viver sob a vigilância de casa. Descobriu que não pode contar com grande parte da família e, mesmo assim, ele se orgulha da pessoa que se tornou, de alguma forma, ama e quer proteger os pais. Realmente se tratarmos tudo como uma questão de vilões, vamos nos esquecer do contexto, da estrutura que reproduz violências por gerações.

Essa outra história também fala de um amor confuso, que confunde controle com afeto. Minha seguidora tinha apenas 13 anos quando tudo aconteceu. Ela estava namorando um adolescente anos mais velho. Na verdade, era uma relação tóxica, dizia que não conseguia sair por “amar o menino”. Mas ele batia nela. Como muitas mulheres em situações parecidas,  ela acreditava que o rapaz ia mudar. A menina foi para uma casa de acolhimento, mas era sempre transferida para outras casas, porque o rapaz sempre descobria onde ela estava e induzia ela a sair para se encontrarem. As casas de acolhimento não são uma prisão e a pessoa pode ter celular e outros meios de comunicação. 

Em uma dessas fugas, o jovem levou minha seguidora para uma favela em São Gonçalo, onde ele morava. Lá ela viveu em cárcere privado. A jovem era agredida fisicamente e verbalmente e só era permitido sair até a esquina de onde morava para comprar pão. 

Sabendo disso, o conselho tutelar armou um plano de fuga junto dela. O conselheiro tutelar responsável me explicou, foi mais ou menos assim: “Ela convenceu o ex namorado a deixar ela ir comprar o pão. Saiu com a roupa do corpo, foi até a BR-101, entrou no nosso carro do conselho tutelar e a enviamos para outro município”, disse o conselheiro tutelar de Niterói.

A persistência do homem de descobrir as casas de acolhimento onde ela estava é impressionante, sempre prejudicando a garota e dando mais trabalho para o conselho tutelar. Isso não é amor. Só a última parte parece tirada de um filme de ação, mas é o que uma garota de 13 anos teve de enfrentar. Isso me faz pensar sobre como a educação sexual é importante. Poderia ter evitado esse tipo de situação, em casa dificilmente a agressão para. Vira cárcere. Essa menina teve a chance de escapar, mas me fez pensar em todas as outras meninas que não conseguiram fugir, que não tiveram o auxílio do conselho tutelar, que infelizmente seguiram sendo enganadas ou coisa pior. Procure ajuda, mesmo que não seja para você.  

No próximo texto vamos falar da coragem para dizer um “basta”.

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